Quando minhas raízes foram arrancadas.

Traumas...são marcas tão profundas que mesmo quando você acha que não as tem elas dão um jeito de aparecer.
O primeiro trauma que tenho e que vou dividir com vocês foi minha volta ao Brasil. Foi para mim algo tão violento que me tirou o chão.
Em 1978 meu pai, militar, foi convocado para trabalhar em Santa Cruz de la Sierra, Bolívia. Naquela época pais decidiam a vida dos seus filhos sem ao menos perguntar o que achavam. 
Meu pai foi na frente, mas eu nem tinha me dado conta de que aquilo era real pois meu pai sempre viajava a serviço e ficava meses fora.
Um dia, ao chegar em casa vi que não havia móveis, as roupas estavam penduradas em um barbante esticado e havia malas por todos os cômodos. Foi então que me dei conta que realmente algo estava para acontecer e que me envolvia.
Na realidade, não sentia nada a esse respeito, não tinha grandes amigos por aqui, não tinha muita atenção dos meus pais porque tinha uma irmã e uma sobrinha e também avó e tio doentes que consumiam a atenção dos meus pais. Era muito sozinha e brincava com amigos imaginários mesmo aos 13 anos. Me divertia desenhando no quadro negro o que as pessoas faziam no dia a dia e paisagens. 
Não era popular, minhas "paqueras" de adolescentes eram apenas frutos da minha imaginação, pois os garotos me achavam feia. Era a baixinha gordinha de óculos. Minhas amiguinhas eram as da escola e só as via na escola mesmo ou em poucos casos que ia para a casa delas por causa de alguma festinha. Minha mãe não gostava de amigas em minha casa. 
Então no fundo no fundo não tinha laços afetivos por aqui. 
E em dezembro de 1978 lá fui eu para minha nova casa. 
Ao chegar no aeroporto de lá, achei estranho, era uma cidadezinha, muito diferente da cidade grande do Rio de Janeiro, empoeirada e com uma língua estranha. Era ali mesmo que ia morar? 
De início não fomos para a casa que iríamos viver, fomos para a casa onde meu pai trabalhava, onde havia muitos quartos, onde se recebia os militares brasileiros quando iam para lá. 
Andando até chegar a meu destino, prestava atenção nas ruas e nas casas. Não havia edifícios e as casas tinha no máximo dois andares. A maioria era pintada de branco e tinha portais e colunas, algumas decorações em madeira e parecia ter saído do passado de algum filme de história. 
Chegamos a casa que iriamos passar a primeira semana e fui logo escolher meu quarto, A principio escolhi um que tinha 5 camas mas no banheiro tinha uma banheira, velha mas tinha. Achei chic e fiquei ali. Nossa, ia tomar banho de banheira! rs Mas dois dias depois fui para um quarto menor. Fiquei com medo de um quarto tão grande.
De noite, meu pai nos levou a praça principal, que era aonde tudo acontecia, tinha a lanchonete ( sim, tinha apenas uma), a catedral e a prefeitura. As pessoas se divertiam circulando a praça e conversando nos bancos. 
Fomos e voltamos a pé, não era mais que 5 minutos de caminhada. Tudo era tão pequeno e tão acolhedor.
Eu mal tive tempo de me adaptar, Meu pai me colocou em uma professora de espanhol pois rapidamente teria que fazer exames para ser admitida na escola. Era dezembro e as aulas começariam em fevereiro; 
Tudo era feito a pé, eu ia a professora particular e não tinha medo de andar pelas ruas. Em uma semana já havia aprendido o básico da língua e estava pronta para outra professora, desta vez aulas de história(da Bolívia), mais espanhol, matemática e francês.
Meu pai nos apresentou a uma senhora, Dona Hermínia, que era professora de lá e estava ajudando meu pai com os tramites para eu ir a escola. Ela tinha 3 filhos, duas meninas e um menino que era o mais velho e que fazia faculdade aqui no Brasil. 
Também conheci uma família de portugueses que morava lá e haviam fugido de Moçambique ou Angola, não me lembro direito agora. Eles tinham dois filhos, um menino e uma menina, a Luiza, alguns poucos anos mais velha que eu. 
Umas duas semanas depois fomos para nossa casa, os móveis não haviam chegado do Brasil e nos virávamos com os moveis que tinham na casa mas logo os móveis chegaram e nos instalamos. Eu estava alegre em morar em uma casa grande, com um quintal enorme cheio de árvores e plantas. Era uma casa velha mas grande e aconchegante. Tinha um telhado de madeira. Antes eu dividia tudo, agora tinha meu próprio quarto e meus pais saiam comigo sempre. 
Luiza, começou a sair comigo, para passear e conhecer pessoas de lá. Na época um rapaz de lá se interessou por mim e eu achei o máximo um rapaz se interessar por mim já que aqui eu era a feiinha de óculos. Existia algo diferente naquele lugar. Não havia roupas de moda e nem lugares de moda. A vida era pacata e os programas eram sempre chás e reuniões nas casas das pessoas. Estava tendo algo que não tinha aqui no Brasil, vida social. 
Fiz minhas provas e fevereiro chegou, fui para a nova escola. Era uma escola de freiras a dois quarteirões da minha casa. Meu pai me colocou nessa escola já que toda minha curta vida passei na escola de freiras aqui no Brasil então suavizaria a mudança. Fui muito bem recebida e me senti em casa. Era uma escola só para meninas e rapidamente fiz amizades. Claro que existiam meninas populares mas a maioria eram iguais a mim, meninas comuns e as populares não tinham problema algum em andar com "as normais". 
Diferentemente dos meus pais que começaram a manter relações mais fortes com os brasileiros do local, eu comecei a viver como uma boliviana, ´pegava táxi, comecei a frequentar os locais onde minhas amigas frequentavam. As meninas andavam de vestido, raramente nos viam de calças compridas, era comum dormir na casa de amigas, íamos a festas de aniversário, chás, reuniões, serenatas, sim lá na época, is meninos ainda faziam serenatas. E nós podíamos andar na rua as duas da manhã sem medo. 
Fiz amizade com uma menina chamada Ingrid que virou minha irmã de coração. Ela dirigia, sim lá se podia dirigir aos 14 anos e tinha um fusquinha branco. Nos víamos todos os dias e tinha também a Sandra que também se tornou outra amiga de coração. 
Estava criando algo que não tinha aqui no Brasil, criando raízes.
Minha casa, meus amigos, a língua, a comunidade....
Em dezembro do ano seguinte meus pais resolveram passar o Natal aqui no Brasil, não queria mas vim porque para mim "era só uma viagem de passeio" mas não via a hora de voltar para minha casa. 
E voltei um mês e meio depois para minha santa vidinha. Nem havia me dado conta que aquele seria o último ano ali.  Acho que eu tentava ignorar algo que era inevitável.
Quando o dia de fazer o processo inverso para voltar ao Brasil, eu surtei. Não queria, pedia  a meu pai por favor que não saíssemos dali ou que me deixasse ficar. Fugi de casa, fui para a casa da Sandra e mesmo depois de que a mãe dela disse que ficaria comigo ele não permitiu ou talvez não via um jeito de que eu pudesse ficar. Além do fato de que ele tinha medo que eu ficasse e acabasse ficando gravida de algum boliviano porque sinceramente meus pais não viam que lá eu tinha amigos, comunidade mas só viam a parte sexual da coisa e isso nem me passava pela cabeça.
Voltei para casa mas por um breve período de tempo. Mais uma vez fomos para o local aonde meu pai trabalhava com malas e tudo mais. No fundo eu esperava que um milagre acontecesse e de que eu ficaria. Foram os dias mais tristes da minha vida que começava. Eu chorava dia e noite. 
Chegou o dia da partida, fui para o aeroporto aonde me esperavam minhas amigas, novamente, eu implorei ao meu pai mas nada....
Do avião, ao anoitecer, via a cidade se distanciando e com ela tudo que eu mais amava nesta vida. As lágrimas caiam e eu não podia fazer nada. Era impotente.  E naquela partida minha vida ficou mais escura, minhas esperanças foram decepadas a ferro e fogo. Foi por demais doloroso. 
A verdade é que cheguei ao Brasil e por um ano, mesmo levando a vida adiante, tentava convencer meu pai que tinha que voltar, continuava chorando dias e noites a fio, Mas nada.
Por um bom tempo, mantinha correspondência com as pessoas de lá e me batia uma saudade....
Eu já reencontrei a Ingrid duas vezes aqui no Brasil mas voltar lá nunca voltei.
Sei que minhas amigas se encontram até hoje, praticamente toda semana, mesmo depois de 35 anos. E no final era isso que eu queria na vida simplesmente, ter minhas amigas por perto.
Algo que 35 anos depois não consegui ter no Brasil, amigas que são irmãs de alma e uma vida social baseada no respeito. Viver em uma sociedade onde você vale aquilo que você é  e não quem você é e o que tem. Um lugar que não tem modismos, ter uma vida pacata e tranquila. Meus pais não entenderam isso.
E é por isso que até hoje tenho sonhos angustiantes aonde peço a meu pai por favor que me deixe ficar lá. Acordo angustiada e me dói.
Até hoje...
Se vou voltar lá? Eu não sei. Para que? Para ter de voltar de novo querendo ficar? Ter de passar de novo por aquela dor?
Ainda não resolvi isso dentro de mim. 
E no final minhas raízes nunca mais foram plantadas de novo, são raízes aéreas que se alimentam da umidade e que balançam ao sabor do vento. resilientes...

                                           Tempos felizes





                                       A DESPEDIDA



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