O MEU ACIDENTE VASCULAR CEREBRAL
Era dezembro de 2000. Estava numa vida turbulenta. Nessa época, trabalhava com vendas, com metas. Minha operação de telemarketing trabalhava 20 horas por dia, 7 dias da semana. Só tinha um final de semana livre de 15 em 15 dias. Muitas vezes entrava as 06h30m da manhã e saía às 8 horas da noite.
Ainda tinha que criar um filho sozinha e ter uma vida social. Era uma época muito turbulenta...
Naquele ano trabalhei no dia 24 de dezembro até as 18 horas. Fui para casa, com enxaqueca, o que é algo comum para mim, e ainda tinha que fazer a ceia de Natal meu filho e eu. Naquele ano ficamos só nós dois para a ceia. Não vou negar, estava triste. Por mais que gostasse de trabalhar minha vida tinha se tornado uma loucura sem fim e não tinha o descanso merecido fisicamente nem mentalmente. Não nasci para trabalhar daquele jeito insano.
Bom, de qualquer forma jantamos e depois fomos dormir.
Passei o dia 25 em casa, descansando, pois no dia seguinte voltaria a trabalhar.
A noite, lá pelas 9 da noite, pelo que me lembro, estava vendo televisão e meu filho estava no quarto. Quando ele foi à sala me perguntar algo simplesmente a minha voz não saiu, tentava falar e só saía um "ow", nem balbuciar a palavra com os lábios conseguia. Fiquei desesperada. Acontecera alguma coisa e eu não sabia o que era e estávamos sozinhos, eu e meu filho de 11 anos. Meu filho me vendo tão nervosa pediu calma e disse para eu ir dormir, que amanhã tudo estaria melhor. E foi o que fiz. Como de costume, coloquei o despertador e fui para a cama.
Quando acordei qual foi minha surpresa ao saber que a voz não havia voltado. Fiquei mais desesperada ainda! Acordei meu filho, pedi com gestos para ele ligar para meus pais e minha irmã foi acionada para me levar ao hospital onde ela trabalhava como enfermeira.
Como não podia falar, na minha cabeça vinham pensamentos do tipo "o que vou fazer agora?", "como vou sustentar meu filho já que trabalhava em telemarketing?", e “se me mandarem embora, já que trabalhava como cooperativada e não tinha direitos trabalhistas?".
A princípio minha irmã me levou a um otorrinolaringologista, pois achava que seria calos nas pregas vocais, o que era bem comum em pessoas que trabalhavam com telemarketing por longo tempo. O médico me examinou e não encontrou nada. Disse que talvez eu estivesse muito estressada e me passou um calmante natural e me mandou para casa.
Naquela tarde fui almoçar na casa dos meus pais. Eu chorava muito durante o almoço, não conseguia falar nem com os lábios, era tudo muito estranho e assustador. Após o almoço, minha sobrinha me levou para o terraço para conversar e tentar me acalmar e começou a fazer perguntas tipo sim ou não, o que eu poderia acenar com a cabeça. Ela teve a feliz idéia de me pedir para escrever algo e funcionou! Na mesma hora ela viu que estava tendo dificuldades não só para escrever, mas para passar as mensagens no papel. Eu pensava corretamente, mas o que saía no papel não era o que eu queria dizer.
Ela desceu rapidamente comigo e disse para minha irmã voltar correndo comigo para o hospital, pois meu problema era neurológico. E foi o que fizemos.
Chegando ao neurologista, depois de fazer todos os exames clínicos, foi pedida uma tomografia de urgência. Foi uma surpresa para todos verem que havia tido um acidente vascular cerebral do lado esquerdo, O neurologista falou que naquele momento nada poderia fazer, a não ser esperar que o sangue que estava espalhado no cérebro fosse absorvido pelo próprio corpo e depois fazer a fisioterapia e fonoaudiologia. Com o tempo novas conexões se formariam, mas aquele lado do cérebro infelizmente era apenas de tecido morto. E que eu havia tido muita sorte, pois havia dormido após o derrame e poderia não ter acordado mais.
Sabendo de todos os fatos meus pais ligaram para meu trabalho e avisaram o que havia ocorrido e como estava. Para encurtar, isso era uma quarta feira, na sexta feira fui ao trabalho pessoalmente com meus pais e meu filho que acabou sendo o tradutor de meus gestos. Segunda feira lá estava eu no trabalho, junto com meu "tradutor". Poderia ser demitida, mas não por não ter tentado trabalhar mesmo muda. Eu não queria ser vítima, queria ser uma vencedora, se fosse ficar daquele jeito ia tentar levar a vida mais normal possível.
Sei que com o tempo as palavras foram voltando à minha boca, assim como uma criança que aprende a falar. Não fiz fisioterapia nem fonoaudiologia, olhava no espelho e ia tentando até conseguir. Já havia aceitado o fato de que iria ter que aprender a linguagem de surdos-mudos, coisa que não foi necessária. Com um mês mais ou menos já havia dispensado os serviços do meu tradutor particular (meu filho de 11 anos) e já andava sozinha pela rua. Não que já estivesse 100% recuperada, aliás, fiquei com sequelas, mas elas não são perceptíveis para quem não me conheceu antes. Tenho dificuldade de falar e escrever, tenho que pensar antes de falar e invariavelmente muitas vezes acabo falando e escrevendo errado.
Agora era a hora de saber qual havia sido a causa do AVC. O neuro estava determinado a saber porque uma pessoa magra ( era magrinha na época), com níveis baixos de colesterol, glicemia e triglicerídeos normais, com pressão baixa, havia tido um derrame.
Passaram a analisar minha vida, tinha uma vida estressante, fumava e tomava pílula anticoncepcional. Isso deu a dica para ele, talvez tivesse sido uma trombose. Comecei a fazer vários exames específicos sanguíneos e depois de quase dois meses chegaram a um diagnóstico: "deficiência do fator V de Leinden"
O fator V é uma glicoproteína- vitamina K dependente sintetizada no fígado. É parte do complexo conversor de protrombina, atuando na via extrínseca da coagulação. Especificamente este é um fator que acelera a conversão de protrombina para trombina. A deficiência de fator V é uma condição herdada, autossômica recessiva que ocorre com igual frequência em homens e mulheres. Os sintomas podem ser leves a severos, ou seja, no final das contas eu fabrico coágulos com mais facilidade, e dependendo do local pode ser um simples roxo na pele como pode ser uma isquemia em locais fatais como no cérebro, coração, ou pulmão. A associação deste fator + tabagismo + anticoncepcional + vida estressante e eu acabei virando uma bomba relógio que iria explodir a qualquer momento.
Mas como viver daqui para frente?
Havia a sugestão de um afinador de sangue, injetado diariamente para minimizar a formação de coágulos, mas neste caso a situação seria outra, mexendo no sangue, um simples ciclo menstrual ou mesmo uma queda poderia me causar uma hemorragia severa. Então caberia a mim escolher de qual modo queria viver a vida, escolhi não utilizar a medicação, mesmo sabendo que teria derrames constantes e torcer para que eles fossem superficiais ou que ficassem em locais onde não arriscariam minha vida. E saber que poderia viver 100 anos ou poderia morrer em minutos e que ninguém poderia fazer nada, pois todo esse processo é muito rápido.
Tive que fazer algumas escolhas, parei de trabalhar, infelizmente o que mais afeta esse problema é o stress e vou explicar porquê. Quando se forma um coágulo em uma veia ou artéria ainda tem espaço para o sangue fluir, mas com o stress o sangue corre mais rápido e a pressão exercida por esse aumento de sangue faz com que essa veia ou artéria se rompa. Então, teoricamente devo evitar o stress ao máximo, o que nem sempre é possível. Hormônios também facilitam a formação de trombos então também não posso tomar. Uma coisa interessante foi saber que não posso engravidar, sendo que tenho um filho de 22 anos. Quando a hematologista soube disse que ele era um bebê- milagre, pois mulheres com essa deficiência não conseguem levar uma gravidez a termo sem tomar anticoagulantes, pois abortam nos primeiros meses. Pois foi esse bebê-milagre que me ajudou muito no período pós AVC, ele era o único que entendia o que eu queria falar.
Já se passaram 10 anos e vivo de forma diferente. Hoje não faço planos para o futuro, as pessoas pensam em anos, eu penso em semanas. Não sei se chegarei até lá. Vocês podem estar pensando que podem morrer antes de mim e sim, isso é verdade, mas você passa a enxergar a vida diferente quando sabe que carrega uma bomba relógio dentro de si.
Já fiz outras ressonâncias e identificaram outros "pequenos derrames" mas não me preocupo muito. Aliás, não vou perder meu tempo com um problema que não tem solução.
Procuro viver um dia de cada vez. Amanhã é uma incógnita.
Anexo um texto de como identificar um AVC e procurar ajuda o mais rápido possível, pois eu fiz tudo errado por minha ignorância neste assunto na época, mas hoje posso ajudar a outros que passaram, passam ou passarão por isso.
P.S.: Considerações emocionais sobre o meu derrame:
No início, assim que soube, me bateu um desespero, queria viver em um dia tudo que não havia vivido por anos!
Com isso fui vivendo freneticamente, querendo absorver tudo de uma vez. Fiz boas escolhas e fiz também más escolhas. Faz parte de viver.
A partir do momento que vi que não havia morrido, me acalmei e aprendi a viver um dia de cada vez.
O que aprendi nesse período foi que "você começa a entender a vida quando fica cara a cara com a morte" e que "quem tem medo da morte tem, medo da vida".
É impressionante como não nos damos conta de como coisas simples fazem falta até não termos mais. Atender um telefone, falar bom dia para alguém, escrever uma mensagem... Foi uma experiência terrível que você passou e que te mudou não só fisicamente mas em tudo o mais. Compartilhando o seu relato você me fez pensar em como devemos viver mais o momento e ser gratos pelo que temos.
ResponderExcluirÉ verdade amiga. Obrigado pelo comentário.
ResponderExcluirTe amo amiga! Sabia sobre o que viveu, mas sinceramente, não sabia que foi tão grave assim, saiba que cada dia que vivo quero-te muito bem, muito mesmo, viu?
ResponderExcluirbjs
Obrigado amiguinha! Também te amo!
ResponderExcluirDamos importância a tantas bobagens...nos estressamos com tanta facilidade...e o que realmente importa é estarmos vivos!!!Vivos no melhor sentido dessa palavra,vivos e vívidos.
ResponderExcluirParabéns pela superação!Um beijo no coração!
É verdade Lourdes! beijos e obrigada!
ResponderExcluirCarinho pra vc Sheila. Vc é uma vencedora. Dias bons, claros pra ti e para os teus. Enorme abraço fraterno!
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